Há um futuro possível em que o 1% levanta o dedo médio para os 99%, liga o foda-se para a ralé e desdenha de um planeta devastado pela farra capitalista. Afinal de contas quem precisa se preocupar com o aquecimento global quando pode comprar um apartamento de luxo com ar condicionado?
Neste plausível porvir, a elite econômica dá seu jeito para curtir privilégios e confortos em meio ao extermínio em massa: enquanto multidões de humanos morrem como moscas e a biodiversidade do planeta colapsa, os megaricos comem caviar e investem capitais e esperanças em Ellon Musks ou outros “visionários” que levarão os bem-nascidos para viver em outro astro do sistema solar.
Eis um futuro que os ricos do planeta já estão se preparando para encarar, certos de que o dinheiro em excesso que amealharam comprará o direito de atravessar o apocalipse num bunker de luxo, como mostram reportagens da Forbes [1] ou da CNN [2].
Há um outro futuro possível onde os 99% (termo cunhado por David Graeber para se referir à potência multidinária das massas) despertam para o seu próprio poder, conjugam forças e agem em concerto para expropriar os expropriadores, distribuindo o capital em abundância que hoje se encontra injustamente concentrado em pouquíssimas mãos.
Este tema da luta de classes sob as condições do Antropoceno, que traz novas variáveis para A Condição Humana analisada por Arendt, é também um dos temas mais quentes da arte contemporânea. Tanto que pulsa no cerne de obras-primas de um dos melhores cineastas em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho, realizador de Parasita, O Hospedeiro, Okja, Snowpiercer.
Quem assistiu aos filmes de Bong não terá dificuldades em aceitar uma tese que Godard sempre afirmou: “o cinema pensa, e dá a pensar.” Como esclarece o psicanalista Enéas de Souza, “um filme traz e contém em si, como uma doação, a presença de um pensamento” (ou vários):
“”O cinema pensa com o quê? O cinema pensa com o plano, com o que está dentro do enquadramento e com o que está fora dele… Pensa com o que seleciona para filmar e com o que deixou de lado. Pensa com a duração do plano, definida pelo corte, (…) e pensa com o movimento da câmera modificando o próprio plano, através de travellings, planos-sequência ou panorâmicas. Pensa com os atores, com o seu rosto, com os seus gestos, com os seus cabelos e com os seus olhos (o cinema é a melodia do olhar, dizia Nicholas Ray). Pensa com a roupa que os intérpretes usam. Pensa com os diálogos dos personagens, com a geografia dramática do cenário, seus abismos, seus bloqueios, suas rugosidades, suas planícies, suas montanhas, suas ruas e seus apartamentos. Pensa com o diálogo e com o duelo das imagens e do som. No entanto, o cinema pensa tudo isso em seu conjunto, porque a montagem é a determinação do todo’. Assim não falava Zaratustra, assim falava Gilles Deleuze.” [3]
Os pensamentos de que a arte contemporânea está repleta, em romances, filmes, canções, graphic novels, séries, dentre outras produções culturais, merecem a atenção de qualquer cidadão que se sinta responsável pelo advento de um futuro vivível – e que não se sinta apenas como espectador do que está por vir. Um espectador não é, aliás, nenhum cidadão no sentido pleno do termo. Mas seria tosco e limitado qualquer cidadão que pretendesse, para se orientar politicamente no que diz respeito à ação coletiva, ignorar completamente o que pensam e expressam os artistas, focando exclusivamente nas ciências sociais. Contra tal hiper-especialização limitante, é preciso abrir horizontes para abarcar tudo aquilo que a arte pode nos ensinar e nos provocar a pensar.
Para exemplificar mais a fundo o que quero dizer, falemos sobre Quatro Futuros (Autonomia Literária, 2020), livro do editor da revista Jacobin, Peter Frase. O autor procede como se não houvesse nenhum abismo intransponível entre as ciências humanas e a ficção especulativa. Ignorando as proibições usuais que tentam confinar o pesquisar um enclave acadêmico específico, Frase fica saltando com audácia da obra de pesquisadores sociais para romances e filmes sci-fi, dando atenção tanto aos jornais do dia quanto às previsões de futurólogos:
“Em uma exploração emocionante e divertida das utopias e distopias que poderiam se desenvolver a partir da sociedade atual, Peter Frase argumenta que o aumento da automação robótica e uma crescente escassez de recursos, graças às mudanças climáticas, transformarão profundamente o mundo como conhecemos.
Neste livro, Frase segue os preceitos daquilo que Max Weber chamava de “tipos ideais” para tentar imaginar como esse mundo pós-capitalista pode parecer, empregando as ferramentas da sociologia e da ficção especulativa para explorar o que o comunismo, o rentismo, o socialismo e o exterminismo podem realmente acarretar.
O ponto de partida de toda a análise é a certeza de que o capitalismo vai acabar, e que, como disse Rosa Luxemburgo diante da I Guerra Mundial, ou a sociedade “entra em transição para o socialismo, ou regride para a barbárie”. Misturando ficção científica, teoria social e as novas tecnologias que já estão moldando nossas vidas, Quatro Futuros é um balanço dos socialismos que podemos alcançar se uma esquerda ressurgente for bem-sucedida frente à barbaridade que encontraremos se esses movimentos falharem.” [4]
Em sua análise do filme Elysium (2013), escrito e dirigido pelo sul-africano Neill Blomkamp, Frase destaca as feições de um futuro apartheid que já se manifesta nas tendências do presente.
Em uma “Terra distópica no ano 2154, uma pequena elite – o 1%, se você preferir – partiu para uma estação espacial e lá desfruta de conforto e lazar em vidas aparentemente eternas, devido ao acesso à milagrosa tecnologia da Med-Bay. Enquanto isso, de volta à Terra, o resto da humanidade vive em um planeta superpopuloso e poluído, governado por uma força policial robótica. O enredo está centrado em torno de Max (Matt Damon), um membro da ralé presa à Terra, envenenado por radiação, que tenta penetrar no santuário de Elysium e acessar suas maravilhas médicas.” [5] (Frase, 2020, p. 135)
Apartados das ralés fedorentas, os super-ricos gozam de seus Campos Elíseos: uma área VIP (só para pessoas muito importantes, isto é, very wealthy people) onde um crânio esmagado pode ser reconstruído com uma impressora 3D e um câncer pode ser curado em segundos através de um re-arranjo atômico-celular produzido por mega-máquinas de cura.
A própria morte parece ter sido transcendida em Elysium, com uma potencial imortalidade posta à disposição dos ricaços na figura de uma tecnologia capaz de consertar sem fim o organismo humano, aumentando indefinidamente a expectativa de vida.
Em Elysium, as elites globais exiladas na estação espacial podem gozar da fina flor da medicina enquanto na wasteland em que a pobre Terra se tornou os humanos seguem morrendo como moscas e se trucidando uns aos outros com armas-de-fogo em meio ao distópico caos que os bilionários quiseram deixar pra trás.
Já havíamos visto algo semelhante no sci-fi Zardoz (1974, U.K.) de John Boorman, onde os habitantes do privilegiado Vortex não morrem mais, enquanto os pobretões que estão excluídos deste enclave do privilégio não só morrem: morrem como moscas.
O filme mostra que não tem graça não-morrer dentro de um pequeno paraíso, rodeado por hordas de humanos incultos e violentos que idolatram um deus das carnificinas. Este deus Zardoz, representado por uma imensa cabeça de pedra capaz de voar (uma montanha voadora! como não seria isto a obra de uma poderosa divindade) na verdade não passa de um disfarce e uma máscara para um “mago” à la Oz. Um pastor de rebanhos humanos, desejoso de manter o controle sobre as massas “primitivas” e botá-las para serem eterna bucha de canhã e eterna mão-de-obra barata.
Já a elite no Vortex tem uma vida de luxo e ociosidade, em que a medicina – à semelhança do que se passa em Elysium – agora permite que se viva até 300 anos de idade. Um tempo de vida incrementado não impede as pessoas de caírem sob as garras de várias condições psicopatológicas, a exemplo da profunda apatia que acomete alguns cidadãos do Vortex, tão insensíveis e indiferentes a todos que parecem mergulhados numa meia-vida catatônica.
As elites Vortexianas também bolaram um sistema penal baseado em castigos diferentes daqueles a que estamos acostumados – prisão, tortura, cadeira elétrica (isto é coisa de bárbaros!) de envelhecimento: de acordo com seu crime, você pode ser punido com 5 ou 7 ou 15 anos de idade adicionados ao seu corpo.
Brincando com “O Mágico de Oz”, o filme revela que esta “magia” imortalista não gerou paraíso algum e coloca esta elite na mira de uma chacina – uma autêntica “invasão de bárbaros” – daquela ralé que, lá fora dos enclaves do privilégio, foi ensinada a idolatrar o deus Zardoz, que adora carnificinas produzidas com armas-de-fogo. Os crédulos em Zardoz são como Bolsominions, infectados com raiva, dotados com armas em excesso e cérebro em falta, correndo como ogros enfezados rumo às matanças ordenadas por aqueles que ficam seguros por detrás das redomas invisíveis do Vortex…
Vivemos numa época em que se fala cada vez mais do advento da era do apartheid climático. As consequências catastróficas do aquecimento global serão desigualmente distribuídas: CEOs poderão ficar tranquilos em seus resorts com ar condicionado enquanto os miseráveis de Bangladesh morrem à míngua ou são lançados aos milhões à condição de refugiados apátridas. Além disso, a própria produção da catástrofe é muito mais atribuível aos 20% dos cidadãos globais mais ricos do aos 80% que estão na base da pirâmide. Filmes como Zardoz e Elysium provam que seus realizadores pensaram a fundo sobre as tendências de seus respectivos tempos presentes e imaginaram um futuro delineado a partir do que hoje se expande.
Um excelente exemplo, citado por Peter Frase, vem de Lagos, na Nigéria, uma megalópole à beira-mar que tem tudo para sofrer tremendos impactos com a subida dos níveis do oceano. Ali, nasceu em uma ilha o enclave “utópico” Eko Atlantic, uma cidade privada, só para V.I.P.s, servindo como emblema de um Elysium do planeta real.
Há quem descreva a Eko Atlantic como uma “utopia”, mas ao seu redor estaria uma multidão de milhões de humanos abandonados à mais cruel miséria (agravada pelo efeito estufa) – na Nigéria, cerca de 100 milhões de pessoas (em uma população total de 170 mi) vivem com menos de 1 dólar ao dia, como revela a reportagem do The Guardian, crítica desta “nova e privatizada cidade africana” que serve como emblema do “apartheid climático” que cessou de estar no horizonte de nosso porvir para se tornar uma tendência de nosso presente.
Se a ilha Eko Atlantic nigeriana é análoga à Elysium do filme-sci sul-africano, talvez o ponto de contato mais explícito entre ambos seja o elemento de apartheid que ambas as utopias implicam. Isto sinaliza para um porvir em que não nos veremos livres de tudo aquilo which tears us apart. Peter Frase explana isto muito bem em Quatro Futuros, auxiliado pelas obras dos sociólogos Bryan Turner e Christian Parenti.
“O sociólogo Bryan Turner tem defendido que vivemos em uma SOCIEDADE DO ENCLAVE. Apesar do mito da mobilidade crescente sob a globalização, nós na verdade habitamos uma ordem em que ‘governos e outras agências procuram regular espaços e, quando necessário, imobilizar fluxos de pessoas, bens e serviços’ por meio de ‘cerceamentos, barreiras burocráticas, exclusões legais e necessidades de registro’.
É claro aqui que são os movimentos das massas que permanecem restritos, enquanto a elite segue cosmopolita e móvel. Alguns dos exemplos que Turner reúne são relativamente triviais, como salas de recreação para passageiros aéreos frequentes e quartos privados em hospitais públicos; outros são mais graves, como comunidades fechadas (ou, em casos mais extremos, ilhas privadas) para os ricos e guetos para os pobres – sendo a polícia responsável por manter as pessoas pobres fora dos bairros ‘errados’.
Quarentenas biológicas e restrições de imigração levam o conceito de enclave ao nível do Estado-nação. Em todos os casos, a prisão aparece como o último enclave distópico para aqueles que não obedecem, seja a penitenciária federal ou o campo de detenção em Guantánamo.
Comunidades fechadas, ilhas privadas, guetos, prisões, paranoia terrorista, quarentenas biológicas – isso equivale a um GULAG GLOBAL invertido, onde os abastados vivem em pequenas ilhas de riqueza espalhadas por um oceano de miséria.
Em ‘Trópico do Caos’, Parenti mostra como essa ordem é criada nas regiões em crise ao redor do mundo, à medida que as mudanças climáticas trazem o que ele chama de ‘convergência catastrófica’ de mudanças ecológicas, desigualdades econômicas e falência de Estados.
Na sequência do colonialismo e do neoliberalismo, os países ricos – juntamente com as elites dos países mais pobres – têm facilitado a desintegração em violência anárquica, enquanto várias facções tribais e políticas lutam por recompensas cada vez menores de ecosistemas deteriorados.
Diante dessa realidade sombria, muitos dos ricos… se resignaram a erguer barricadas em suas fortalezas, a serem protegidos por drones não-tripulados e empreiteiros militares privados. A mão de obra de guarda, uma característica da sociedade rentista, reaparece em uma forma ainda mais malévola, conforme um pequeno número de sortudos são empregados como capatazes e protetores para os ricos.” [7] (FRASE, op cit, p. 145)
A militarização da força policial, uma tendência fortíssima em países como EUA e Brasil, além do encarceramento em massa conexo a uma lei de drogas proibicionista, são temas de livros recentes importantes como Rise of the Warrior Cop, de Radley Balko, e Golden Gulag, de Ruth W. Gilmore.
Caso o futuro humano esteja ainda raptado pelos capitalistas e pela tirania do 1%, o que podemos esperar é um cenário que o sci-fi distópico já denunciava: um mundo repleto de Robocops, como no filme de Paul Verhoeven (1987) situado numa Detroit distópica, em que as SWATS TEAMS ou Tropas de Elite tocam o terror sobre a população guetificada e empobrecida, impondo um controle tão brutal quanto o exército de Israel faz nos territórios ocupados da Palestina.
Um mundo onde a vigilância onipresente faz pensar num Estado policial-carcerário com elefantíase e capaz de punir os crimes antes mesmo que sejam cometidos, como em Minority Report (de Spielberg, adaptando obra de Philip K. Dick). Tudo isto edificando um novo apartheid em que grandes corporações, como a Vivos, vendem megabunkers protegidos de radiação e de tsunamis, compráveis por 3 milhões de euros numa montanha da Alemanha, onde os milionários podem aguardar o apocalipse com muito conforto.
A obra de Frase, apontando para a possibilidade concreta de um futuro comunista, que ele tenta prefigurar em minúcias, não deseja contribuir para o fatalismo, ou seja, para a resignação às tendências que hoje se mostram hegemônicas. Deseja, muito mais, ajudar na superação da deprimente sensação expressa à perfeição na emblemática frase de Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”
A frase Fisher não pode ser mal compreendida: o fato de ser mais difícil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo não torna esta tarefa menos urgente e necessária, isto apenas significa que nossa tarefa histórica não é fácil e que a revolução não é um jantar de gala.
Precisamos urgentemente não só imaginar o fim do capitalismo mas enterrá-lo de fato, superado por algo melhor, caso queiramos que o mundo humano como o conhecemos tenha outro destino que não um catastrófico fim em uma agonia de séculos, onde Elysiums utópicas proliferarão em enclaves-do-apartheid rodeados pelo caos distópico fomentado por ideologias exterministas como o Bolsonarismo.
Na Jacobin, em um artigo chamado “O Conforto da Distopia”, Frase critica a esquerda catastrofista e inerte, que profetiza o apocalipse mas nada faz no sentido da ação coletiva em prol de alternativas:
“Uma das coisas com as quais tenho me debatido, como escritor, é a tendência dos meus escritos mais especulativos de despertar uma linha de quietude apocalíptica na esquerda radical. Para mim, a história que estou contando é toda sobre esperança e ação: o futuro está aqui, só que mal distribuído, e apenas através de luta poderemos realizá-lo de maneira mais adequada.” [8]
NOTAS
[1] FORBES. Billionaire Bunker Owners Are Preparing For The Ultimate Underground Escape. 2020.
[2] CNN. Billionaire bunkers: How the 1% are preparing for the apocalypse. 2019.
[3] SOUZA, Enéas de. Cinema e Psicanálise, Vol. 2- A Realidade e o Real: Verdade em Estrutura de Ficção. São Paulo: nVersos, 2015. 2ª ed. Pg. 57.
[4] AUTONOMIA LITERÁRIA. Apresentação de Quatro Futuros de FRASE, P. 2020.
[5] FRASE, Peter. Quatro Futuros: A Vida Após o Capitalismo. São Paulo: SP, Autonomia Literária e Jacobin, 2020.
[6] THE GUARDIAN. New, privatized African city heralds climate apartheid. By Martin Lukacs, 2014.
[7] FRASE, P. Op cit. Pg. 145.
[8] FRASE, P. O Conforto da Distopia. Revista Jacobin Brasil, 22/09/2020.
A imagem de abertura deste post é uma obra atribuída ao grafiteiro Banksy que mostra um aparato militarizado de segurança defendendo um carro-forte cheio de capitais que carrega no seu teto um mega Donut.
Publicado em: 25/03/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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